28.8.07

O parque

Priscila era uma menina meiga. Brincava de aeromoça e domadora e tinha um sorriso fofo, que a mãe não cansava de elogiar. E quando não tinha ocupação mais urgente, ou distração mais a seu gosto, quando sobrava um tempinho, no fim da tarde, dona Cláudia levava a criança para brincar num parquinho que ficava a quatro quarteirões da casa. Foi assim também naquela quarta-feira.

Dona Cláudia acabou umas encomendas de costura para uma vizinha, e levou a filha ao passeio. Encontrou um jornal sobre um dos bancos do parque e esta foi sua distração naquele resto de tarde, enquanto a filha brincava de corda, depois pega-pega e mais o quê de brincadeira que Dona Cláudia nem conhecia. E assim balançaram os olhos da mulher, ora no jornaleco, amarelo por de um dia de chuva e dois de sol, ora esquadrinhando o parque, procurando ver qual a nova atividade da filha. Mas aconteceu que o jornal estava interessante, pois falava do caso de uma moça, do bairro mesmo, que todo mundo conhecia, e que foi pega levando meio quilo de droga na sua bolsa, quando voltava de um baile em que foi com o namorado. Quando foram verificar, descobriram que o rapaz tinha ficha suja, e isso não era tudo. Bonitão que era, ele arrumava dúzias de namoradas, só pra servirem de transportadoras das mercadorias que ele distribuía. Um escândalo.

Dona Cláudia olhou para o relógio e levantou-se de chofre, procurando pela menina, mas só viu o pipoqueiro, que já se levantava de seu banquinho para ir embora. Aí ralhou consigo mesma:
— Eu falei pr’essa menina não ir pro outro lado do parque, mas cadê que ela me ouve? — E dizendo isso, atravessou o playground, passou o prédio da biblioteca, que ficava bem no meio do quarteirão, passou o velho laguinho, que havia meses não tinha mais peixes, e por fim viu algumas crianças jogando pedras nas árvores. Priscila estava com elas.
— Vamos para casa, neném? Seu pai deve estar preocupado!
A menina se virou depressa, soltou as pedras no chão e correu para os braços da mãe.

Ao chegarem na casa, a mãe apertou a campainha, pensando que o marido já tivesse voltado. Como ninguém foi abrir, a mulher empurrou o portão, que cedeu com facilidade, caminhou até próximo da escada, levantou o xaxim da samambaia e pegou uma chave. Sorriu e mostrou a chave à menina, que correu até a porta. As duas entraram e a mãe tornou a trancar a fechadura. Levou a mão ao interruptor, pois já era quase noite.
— Uhm... Acho que tá queimada. Liga não, filhinha, que é jajá que a gente troca, tá bom? — E já ia para a cozinha, quando a menina perguntou:
— Mãe, é hoje que é dia do pai receber, não é?
— É sim, filhinha, por quê?
— Por nada não. — Deu um tempinho, então perguntou pra mãe:
— O pai brigou com a senhora ontem, não foi, mãe?
— Por que está me perguntando isso, Priscila, você ouviu alguma coisa?
— Fala, mãe. Ele brigou, não brigou?
— Brigou sim, menina, mas isso é coisa de adulto. E você não entende. Não pode fazer nada. — Nisso a menina sorriu, levou as duas mãos ao rostinho gordo e falou:
— Mas eu posso sim!
— Você pode o quê, Priscila?
— É que eu contei essas coisas pra um amigo pra ele poder ajudar.

A mãe ficou muito brava e repreendeu a menina. Onde já se viu sair por aí contando aos amiguinhos a intimidade dos pais? Mas a menina riu de novo e balançou a cabeça para os lados.
— O que foi que houve, priscila?
— Ai, ai... Não entende nada mesmo, viu...
— Não sei entendo o quê, Priscila?
— É que eu sou mais esperta, ué!
— O que você está dizendo, Priscila? Por quê você é mais esperta?
— Por que eu falei com alguém que podia ajudar, mãe.
— Como assim, Priscila, com quem você falou? Foi com o tio Mauro, foi?
— Nã... ão...
— Então com quem foi, menina, fala de uma vez!
— Uhm... Hoje num é dia do pagamento?... Então. Eu falei com o meu amigo do parque, aquele que sempre fica rindo pra senhora.
— Ora?!!! O que é que aquele vendedor podia fazer pra me ajudar, menina sem juízo? Um desconhecido, e você contando de mim com seu pai!!... Você merece é um uns tapas bem dados para não fazer essas coisas!... — Mas um pensamento gelado correu a espinha de Cláudia, que ficou paralisada, com a mão levantada, pronta para acertar a filha. Então perguntou pausadamente:
— Priscila, por que foi, exatamente que você quis ter certeza que seu pai recebia hoje?
— Ah, porque assim ficava mais fácil, né, mãe?
— Como assim mais fácil? Mais fácil o quê, Priscila?
— É que eu fiquei com dó da senhora, mãe, aí eu salvei a senhora. Eu falei com meu amigo, que também gosta muito da senhora e ele fez tudo que eu falei.

A mãe baixou a mão, perturbada. Atravessou a sala. Chegou ao corredor, que dava para o quarto da criança, para o do casal e para a cozinha. Abriu um pouco a porta do seu quarto, lentamente, e espiou pela fresta. Tudo estava em ordem. Deu mais dois passos e entrou na cozinha.
Não havia sinais de luta. A toalha branca exibia uma grande mancha escura que quase tomava conta da mesa, manchando também os papéis que estavam sobre o móvel. Acima dessas camadas, duas mãos grossas pousavam sobre a umidade escura, tateando um motivo. O homem estava com a testa na mesa. Cláudia afastou-se e fechou os olhos, encostando-se ao batente da porta e sentindo um cheiro adocicado. Do outro lado da casa, Priscila já se alegrava:
— Oi, Tony! Trouxe algodão doce pra mim?!!!

(2001 ou 2 ou qualquer coisa assim)

27.8.07

A dança

Ai, ai, menina da aldeia!...
Queria ver-te bailando
Bêbado, ficar olhando
Dançares a noite inteira

Ó, ficaste na aldeia!...
E eu parti, cambaleando.
Meu passo foi se firmando
Nesta estrada companheira

Sei da aldeia que termina
Na vida transposta em sina
Quando a estrada recomeça

Baila a tardinha num sonho
Sabes dançar e eu componho
Teu bailado em novas festas

(Talvez 2002)

A canção de Maria

Bandeira,
Cinza das Horas,
Clavadel, 1913

Que é de ti, melancolia?...
Onde estais, cuidados meus?...
Sabei que a minha alegria
É toda vinda de Deus...

Deitei-me triste e sombria,
E amanheci como estou...
Tão contente! Todavia
Minha vida não mudou.
Acaso enquanto dormia
Esquecida dos meus ais,

Um sonho bom me envolvia?
Se foi, não me lembro mais...
Mas se foi sonho, devia
Ser bom demais para mim...
Senão, não me sentiria
Tão maravilhada assim.

Ó minha linda alegria,
Trégua dos cuidados meus
Por que não vens todo dia,
Se és toda vinda de Deus?

24.8.07

— Olha lá uma estrela!
— Cadê?
— Ali, atrás daquela nuvem.
— E como você sabe que lá atrás tem uma estrela?
— Não sei, mas...
— Então?
— É que eu não tinha assunto e tava me sentindo o sereno no silêncio azul.
— Ah, bom.
uma nova poesia nasceu
sem anúncios
sem esforços
assim quase que só da espera

assim como o príncipe
da romântica que sonha e borda
e aguarda sem explicação

a dita brilhou no horizonte,
relinchou seu cavalo e atravessou o vale com cabelo pintado e sorriso Cepacol,
coisa que
admito
quase não existe

Torta de liquidificador

Ponha um liquidificador dentro de outro e bata...

23.8.07

Ocaso

O homem curvo sombreia a mesa
Estende os braços,
Mexe o pescoço,
Sente que não agüentaria outro dia
Mas agüenta

Sua espinha dói, seus pés estão apertados
Seu chefe o manda para o inferno,
Mas é só de brincadeira
Sua vista treme,
Seu nariz escorre,
Seu filho o odeia, mas ele segue em frente
Tem fibra na alma, esse homem
É quase um herói

Não fosse pelo Péricles, estava promovido,
Não fosse pela altura, hoje seria cadete,
Não fosse pela Ismália, amaria Isabel,
Não fosse pelado, seria à meia-luz
Se não fosse pela direita, iria pela esquerda,
Afinal de contas, na nossa cidade,
Todas as questões são de trânsito fácil.

Mas ele prossegue alheio a tudo
Não tem tempo para besteiras o homem
Lima, sua, confere:
Algo falta no orçamento da firma!
Algo que jamais ninguém percebeu
Passou batido de contadores e donos
A empregada não leu nos papéis do lixo
A secretária pensou, mas esqueceu de marcar
Os computadores são inúteis
As campainhas não funcionam
Entra em desesperos o homem
Milênios de progressos em vão e só ele para dar a notícia
Pensa nos jornais. Basta um telefonema. Entretanto não há tempo.
Sucumbe.

(99 ou 2000)

22.8.07

Para a inveja dos tristes

O título do post é do Kleber Albuquerque, que assina com o Camalle algumas das letras mais fofas a atuais do nosso tempo. Muitos já devem conhecê-la, mas, como ela será eterna mesmo, não faz mal colocar aqui uma cançãozinha maravilhosa. Abaixo, vai um link do YouTube para quem quiser ouvir.

Isopor
Elio Camalle e Kleber Albuquerque

Que a luz da lua escorra
Pela pele, pelos pêlos
E que raios de sol embaracem seus cabelos
Que a vida lhe dê muita saliva
Pra lamber sonho em carne viva
Que seu riso não tenha o mínimo pudor

Que os ventos soprem sempre a seu favor
Que você encontra a cama feita, a mesa farta
A casa em festa
Que a boa estrela grude no meio de sua testa
E que o mal tenha paredes de isopor
Tudo de bom

Isopor no YouTube
(risos para a edição do vídeo)

21.8.07

Quase flor

Na minha terra morta, haveria uma horta
se ela não fosse o que é: terra morta
Cresceriam girassóis e morangos, ervas para o chá das cinco,
e enquanto eu corresse mundo, entre visões maravilhosas,
levaria esse jardim comigo



Em verdade carrego, assim,
para os lugares aonde não vou,
esse estranho não-jardim
Tem não-sementes e não-pássaros que nunca ali passarão
Por isso mesmo, eis que surgem, pois sempre ali estão
E nesse não-estar, afoitos, dele nunca partirão

Eu tenho cadeira e varanda, de onde fito a terra seca
(por vezes barrenta, não me importa)
onde a lagarta-borboleta não pôde nascer ou ser morta

Em meu não-jardim, crisântemos não brigam com ervas daninhas
e a samambaia rescende sob o sol do meio dia
As pétalas das margaridas, dourados brincos ciganos,
são caminhas para abelhas e seus lambuzados planos

E a roda das estações, ao revolver meus amores,
não mata folhas ou frutos, não desbota vivas cores

Ao olhar meu reino amado,
─ súbito ─ arranco um galho: meu não-jardim fica triste
E transtornado eu te entrego uma rosa que não existe

20.8.07

Análise



Culpados: Jonas grilo nas guitarras, Ivan Chiarelli no baixo, Gibi na batera, eu de violão e voz e Paulo Assis na produção.

Papel Laminado

Abres teus olhos e vês o abismo
Que fazer?
Fechar os olhos?
Dar mais um passo?
Aguardar um telefonema?
Xixi no abismo?

Tremendo, ensaias uma panorâmica.
Como fostes parar aí?
Agora é tarde.
Mas, tarde para quê mesmo?
(De todos lados, o fosso, que, agudo, mergulha-te goela dentro)

Ah, pensas, era mesmo o destino.
Até agora, só isto quiseste.
A esperança, a meta que perseguias
era o topo
E o topo é o gêmeo do abismo.

Quantos pequeninos abaixo!
Legiões, formigas, pontos, manchas
Aquele deve ser o cais do porto
Jamais visitado
Que sempre te revisita.

Seria mesmo o destino
vontade tola de coisas inexplicáveis?
Viria, depois, a explicação
deitar-se na cama velha da vontade?
(Ah, uma cama velha neste topo!)

Não podes. E sequer pensar devias.
O motivo é que o topo é uno
e nele não cabem pensamentos.
Ratos, pizzas, recados
são substâncias de baixo,
e, quando pensas,
passeias por densidades menos nobres,
e feres,
teu privilegiado ponto de vista.

Uhmm! Ia-me esquecendo!
Precisas furar um olho.
O duplo não cabe no topo!...
Terás sim, a sombra, mas esta,
refletida no abismo, perder-se-á,
como o eco das palavras que não conheces.

De repente, manjas (nirvana)!
E como não faz diferença,
escolhes, enfim, o abismo.
( não por coragem, mas na vista de um velho poema )

no sulfite, tapete voador,
flutuas no tempo igual foto desbotada
e, tal como o desespero, chega então a alegria
e poderias ser um segundo sol se metáforas funcionassem e este momento fosse mesmo o mundo

rápido
teus pés enroscam-se nos garranchos
— vento! —
Com toda a velocidade, algumas vírgulas caem,
Bjxiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...
Despencam significados,
xonados,
elétricos,
e tuas palavras vazias,
sons e ritmo,
tiburcecalabandeando,
vão
quando, enfim, até o papel te escapa.

Eis que a gravidade, quem diria, sem mais nome, existe
e faz com que o papel deslize
e volte
e vá e volte
e deslize e volte
(e continuas no meio)

E cada passada é um corte
então percebes
braço, verrugas, dedos,
um saco roxo amassado,
e teus ouvidos separados
também separam-se os mundos

teu nariz ganhou o Atlântico
teu dedão no Himalaia
terras que não conheces, não podes dizer quais são,
a cada nova investida
o mundo todo se parte
e em toda parte,
do abismo ao topo
teu ser-não-ser se atazana

Em verdade, expressamos,
sobre teu corpo deixado:
— Foi crack!
— Não, êxtase!
( ou taquicardia... )

Teremos, decerto, acertado.
Não saberemos em quê.

imagem da sagrada família

estão de frente o pai e o filho
todos sabem que eles se amam
natural
a igreja sabe, a família deseja, até a moral obriga
se olham com imensa fraternidade
o filho se aproxima e segura o rosto do pai
a mãe está comovida na poltrona
o irmão se enternece
a língua do filho brinca na boca do pai,
roçando palavras duras, dentes amarelos,
uma cárie até então desconhecida,
coisas de gosto diverso

se tudo tivesse acontecido antes,
quanta economia de aborrecimentos!
a filha não teria filho, ou se tivesse,
ao menos teria marido
a mãe não teria deixado de costurar para fora
até o próprio pai teria amado ver o filho na faculdade,
vencendo sim
na vida tão difícil que o homem recebe na terra
o irmão, que sempre gostou de viola não teria partido
para a amazônia,
na primeira oportunidade que lhe deu a Aeronáutica

é de se estranhar que estejam todos na mesma sala
vivendo um momento tão belo
não estão
depois que foi expulso de casa, o filho não achou interessante retornar
a mãe é quase sozinha
o pai só volta bem tarde
às vezes tarde demais

revisões

minha paixão é maria-fumaça
que desgovernada
atinge a primeira vaca que me passa a porta
e queima as carnes
e tritura os ossos
transformando até peido em flores
eu rio dela e por isso mesmo ela existe

minha paixão garota de rua
viciada em crack
culpada e útil
vida pulsando em todos os orifícios
apesar da cárie, da aids, do adidas
santa é a puta que pariu
a mais confiável das criaturas
mas hoje a vejo passar
e não preciso do seu cu na reta

minha paixão é um norte-americano obeso e incomunicável
gritando help morrendo afogado no cais da boca do tango
seus braços pesados batendo
sua boca jorrando água morna
e eu olhando tudo isso sem graça

diabo
o infeliz
se deixo ele
o maldito vem de noite puxar minha perna

cavalo

ao jovem Guevara

cavalgue em mim alma do tempo
meu esqueleto ainda é forte
cavalgue em mim alma do tempo
meu coração ainda é novo
cavalgue em mim alma do tempo
minhas feridas ainda doem

enquanto a fé não vidrou meus olhos
enquanto a fé não clareou-me a face

cavalgue em mim alma do tempo
porque a fome ainda grita
cavalgue em mim alma do tempo
porque o desprezo ainda mata
cavalgue em mim alma do tempo
porque a preguiça

enquanto o sangue não volveu fraco
enquanto o santo não perdeu a fome

cavalgue em mim alma do tempo
enquanto homem
enquanto rato
enquanto bispo
enquanto puta

ainda eu morto ainda viva

trânsito

peguei o ônibus que mais demora na história do mundo
ainda hoje permanece travado
num engarrafamento
saltei no trânsito
desde então
procuro o próximo ponto

fui ficando cego

fui ficando cego
e passei a ver coisas estranhas
pássaros em formatos inimagináveis
ETs no alto de prédios
moças arbóreas à beira de avenidas

sem certeza do que vejo,
seleciono o que imagino
questiono aquilo que calculo
e refaço a base das contas
já não sei realmente se,
para alguém de Marte,
1+1 são 2

de fato, pode até ser, não nego
e, quando passo pelas avenidas, sorrio para as árvores
ou mulheres
que todas merecem uma noite agradável
!de repente, a dúvida!

e se eu resolvesse abraçar árvores e me confundisse?
— totalmente possível e sou casado —

seria este o meu fim?
é claro que não!!!

homem fraco que sou
fugiria
da morte chupando o dedo

de mal em mal

de mal em mal
foi fatal
fiquei bom nisso